Lei do Minuto Seguinte: campanha sobre direitos de vítimas de abuso sexual


  • Criado por: Adriana Diniz
  • Postado em: 01/07/2019

A cada minuto, uma pessoa sofre abuso sexual no Brasil. Não bastasse a dor que esses episódios causam, a ampla maioria das vítimas ainda enfrenta barreiras devido ao desconhecimento sobre a Lei 12.845/2013 e à resistência dos serviços públicos de saúde no cumprimento desse dispositivo, que garante o direito à assistência emergencial, integral e multidisciplinar após as agressões. Para que todos estejam cientes do que a legislação estabelece, o Ministério Público Federal, a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) e a agência Y&R lançaram nesta quarta-feira (7) a campanha “Lei do Minuto Seguinte”.

Toda vítima de violência sexual tem o direito de buscar atendimento emergencial, integral e gratuito na rede pública de saúde sem a necessidade de apresentar boletim de ocorrência ou qualquer outro tipo de prova do abuso sofrido.

Basta a sua palavra para que o sistema de saúde seja obrigado a dar acolhimento com amparo médico, social e psicológico, além do diagnóstico e do tratamento das lesões físicas. A rede pública também deve fornecer os medicamentos necessários para evitar a gravidez e infecções sexualmente transmissíveis.

Esses direitos são garantidos desde 2013, pela Lei 12.845/13, apelidada de "Lei do Minuto Seguinte", mas, na prática, a legislação não é tão conhecida e falta informação e atendimento adequado nos serviços de saúde.

"Essa é uma das formas mais graves de violação de direitos humanos e precisamos lembrar que ela é altamente subnotificada. O que significa que, na realidade, nós não temos estatísticas reais", afirma Silvia Chakian, promotora do Ministério Público de São Paulo em entrevista ao HuffPost Brasil.

Se a pessoa chegou nessa situação de ser vítima de violência sexual, é porque o Estado já falhou antes em algum momento.Pedro Antonio de Oliveira Machado, procurador do MPF.

Ao constatar o problema, após inquérito instaurado no final de 2016, o Ministério Público Federal em São Paulo decidiu lançar agora uma campanha, em parceria com a Associação Brasileira de Agências de Publicidade, para divulgar a legislação e coletar denúncias.

A iniciativa é composta por vídeos, peças gráficas e ações de comunicação digital cujo teor baseia-se na premissa da lei: a palavra da vítima é o suficiente. Cabe a todos os hospitais integrantes do SUS prestar atendimento humanizado e imediato às pessoas que os procurem relatando ter sido alvo de qualquer ato sexual não consentido.

https://youtu.be/fPj6nqntORA

Também foi criado um site para esclarecer as dúvidas e recolher as denúncias de recusa ou de atendimento inadequado. "Percebemos que era preciso fazer uma ampla divulgação dessa lei e, ao mesmo tempo, criar um canal para recolher o feedback de como esse atendimento tem sido feito na rede de saúde e quais são os problemas enfrentados pelas vítimas", explica o articulador da campanha, o procurador do MPF em São Paulo Pedro Antonio de Oliveira Machado.

"Se a pessoa chegou nessa situação de ser vítima de violência sexual, é porque o Estado já falhou antes em algum momento", afirma Oliveira Machado. "O Estado então tem que tomar as providências necessárias - e aí não é uma concepção minha, é o que diz a lei - para amenizar o sofrimento dessas vítimas", completa.

Para esclarecer as principais dúvidas sobre o que a lei garante às vítimas e o que é preciso fazer no momento do atendimento, o HuffPost conversou com Oliveira Machado, Silvia Chakian, promotora do Ministério Público de São Paulo, André Malavasi, diretor do setor de ginecologia do Hospital Estadual Pérola Byington - referência no atendimento a mulheres vítimas de violência sexual -, e Paula Machado Souza, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo.

 

Quais são as consequências da violência sexual? Por que a vítima deve procurar ajuda médica?

 

"A violência sexual causa consequências não só físicas, mas psicológicas nas vítimas. Algumas aparecem imediatamente e outras a longo prazo após o trauma", explica a promotora Silvia Chakian. Além da gravidez indesejada ou de doenças sexualmente transmissíveis, a violência sexual pode causar depressão, desenvolvimento de síndrome do pânico e de pensamentos suicidas, distúrbios relativos à própria sexualidade e o abuso de substâncias psicoativas.

 

O que a chamada "Lei do Minuto Seguinte" garante?

 

A lei garante que os hospitais devem oferecer às vítimas de violência sexual atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, para tratamento e controle dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social.

O atendimento imediato em todos os hospitais integrantes da rede do SUS deve incluir: diagnóstico e tratamento das lesões físicas; amparos médico, psicológico e social imediatos; profilaxia da gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis; facilitação do registro da ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal e às delegacias especializadas, além do fornecimento de informações sobre os direitos legais e todos os serviços sanitários disponíveis.

 

Qual é a primeira coisa que a vítima deve fazer se for vítima de violência sexual? Deve primeiro ir à polícia ou ao hospital?

 

"A mulher deve ir primeiramente ao serviço de saúde. Todas as questões relacionadas ao registro da ocorrência ficam para depois e ela pode, inclusive, como manda a lei, ter a facilitação do registro em uma delegacia a partir do momento em que chega ao hospital", afirma Chakian.

A lei também prevê que os possíveis vestígios deixados no corpo da mulher após violência, como o sêmen do agressor, sejam colhidos pelo médico no hospital para facilitar a identificação da autoria pela polícia, reforça a promotora.

"Não existe uma regra. Cada mulher, na sua individualidade, vai responder de uma forma diferente à violência. Mas, na questão da saúde, existem alguns prazos que precisam ser observados para que a resposta à medicação aconteça", lembra a defensora pública Paula Machado Souza.

No caso do HIV e da gravidez, é preciso que a profilaxia seja iniciada em até 72 horas - ou três dias - após a agressão. Depois disso, os medicamentos não terão efeito.

Se optar por ir primeiro à delegacia, ela deve ser encaminhada posteriormente para o hospital de referência da região para ter o atendimento médico necessário. No estado de São Paulo, são 14 unidades de referência, contando o Hospital Pérola Byington.

 

O que acontece no hospital? Que tipo de medicamentos são receitados?

 

O atendimento para esse tipo de ocorrência é considerado uma urgência e deve ser feito rapidamente em qualquer unidade de saúde. "O profissional de saúde deve ouvir detalhadamente o que aconteceu com a vítima. Esse relato, chamado de anamnese, é importante para sinalizar a quais riscos ela foi exposta e com base nisso o profissional vai instituir a profilaxia", explica o ginecologista André Malavasi.

Se procurar o hospital no prazo de 72 horas após a ocorrência, poder ser administrada a pílula "do dia seguinte", para evitar a gravidez, e iniciada a profilaxia para evitar a contaminação pelo vírus HIV, tratamento que tem duração de um mês. Se procurar o atendimento depois desse prazo, esses medicamentos não terão efeito e não serão oferecidos. "Por isso é importante que a vítima seja encaminhada rapidamente para o serviço de saúde", reforça o médico.

Para as outras DSTs, como sífilis, gonorréia e clamídia, a profilaxia para evitar a contaminação pode ser feita em até sete dias depois do ato sexual não consentido. Mesmo que não consiga fazer essa profilaxia, para esses casos existem tratamentos que podem ser feitos depois, lembra Malavasi.

 

Preciso ir a um hospital de referência? E os hospitais privados atendem esses casos?

 

A vítima deve ser acolhida por qualquer estabelecimento de saúde, inclusive pelos postos de saúde do SUS. Se a unidade não dispuser da medicação necessária ou não tiver condições de atender a vítima, deve levá-la até o hospital mais próximo que possa realizar o atendimento.

"Você tem uma centena de centros de referência de atendimento a vítimas de violência sexual espalhados pela Brasil, mas esse atendimento, especialmente o dos medicamentos, pode ser administrado em qualquer unidade ambulatorial", afirma o procurador Oliveira Machado.

Se a vítima tem plano de saúde, pode procurar esse atendimento em um hospital privado e tem o direito de ser acolhida rapidamente. O tratamento é garantido pelo rol básico de cobertura de qualquer convênio médico particular.

 

É preciso ter o boletim de ocorrência registrado para ser atendida? É obrigatório fazer a denúncia depois?

 

"Não há necessidade ir à delegacia antes ou depois. Se for exigido que a vítima faça o boletim de ocorrência no hospital, isso precisa ser denunciado", alerta o procurador.

"A palavra da vítima basta. Muitos profissionais da saúde ainda têm dúvida sobre a necessidade ou não do boletim de ocorrência. É importante deixar muito claro que ele não é obrigatório", reforça o ginecologista André Malavasi.

No entanto, metade das cerca de 200 vítimas atendidas no Pérola Byington por mês tem até 12 anos. Nesses casos, se uma criança vítima de abuso não chega ao atendimento médico encaminhada pelo sistema de Justiça, o hospital é obrigado a apresentar a denúncia ao Conselho Tutelar e à Vara de Infância, explica.

A vítima adulta pode ou não fazer a denúncia à polícia depois do atendimento hospitalar. "Mas é muito importante que o registro da ocorrência seja feito. Porque, se a gente não registra, a gente contribui para a invisibilidade dessa violência. Esse é um tipo de violência que o agressor tende a reincidir", afirma Silvia Chakian, do MPSP.

"Nós precisamos trabalhar para que as mulheres possam se sentir, pelo menos, mais à vontade para denunciar um episódio de violência sexual da mesma forma que ela denunciaria, por exemplo, um roubo. Sem ser desacreditada, sem ser humilhada", completa.

 

Caso a violência resulte em gravidez, é possível realizar um aborto?

 

Quando a violência sexual resulta em gravidez, a vítima tem o direito de realizar o aborto no sistema público de saúde sem precisar apresentar boletim de ocorrência nem autorização judicial.

Em tese, qualquer hospital que disponha de centro cirúrgico e centro obstétrico pode realizar a interrupção da gravidez nesses casos. Não é raro, no entanto, que o atendimento seja negado em função do convicções religiosas e morais dos profissionais de saúde. A Defensoria Pública de São Paulo costuma receber esse tipo de denúncia.

Nos chamados Serviços de Referência para Interrupção de Gravidez, as ações são desenvolvidas em conformidade com a Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento do Ministério da Saúde.

No Pérola Byington, que é um desses serviços de referência, a paciente é avaliada por uma equipe interdisciplinar, formado por médico, psicólogo e assistente social. Os profissionais avaliam se há relação de causalidade entre o estupro e aquela gravidez, afirma Malavasi. O procedimento de interrupção pode ser feito até a 20ª ou 22ª semana da gestação, caso o feto pese até 500 gramas.

A vítima de estupro não precisa comprovar que esteve no hospital antes para fazer a profilaxia ou que registrou a denúncia contra o agressor. "Muitas das mulheres que chegam ao hospital grávidas em decorrência de estupro nem conseguiram ir atrás da profilaxia ou ficaram tão abaladas emocionalmente que não tinham forças para buscar ajuda antes", diz o médico.

 

O que devo fazer se recusarem atendimento ou não acreditarem que sofri um abuso no hospital?

 

"Se houver qualquer negativa de atendimento nos equipamentos públicos nos moldes do que já prevê a lei, é preciso denunciar", afirma a promotora Silvia Chakian.

A denúncia é importante para que as falhas no atendimento sejam identificadas, reforça o procurador Oliveira Machado, articulador da campanha do MPF. Ela pode ser feita pelo Disque 180, pelo site criado pela campanha, ou pela Sala de Atendimento ao Cidadão do Ministério Público Federal.

"A denúncia pode ser apresentada ao Ministério Público Federal, que tem a atribuição de fiscalizar os serviços de saúde. Se a vítima tiver condições financeiras, também pode procurar um advogado e, se não tiver, pode buscar a Defensoria Pública ou o Ministério Público Estadual", explica a defensora Paula Machado Souza.